domingo, 30 de março de 2014

Ítalo Calvino






 Li Ítalo Calvino pela primeira vez quando eu estava na faculdade, cursando Letras. O livro era "Se um viajante numa noite de inverno". Achei o livro chatíssimo, porque eram várias narrativas curtas que tinham um final aberto, sem conclusão. Então, no ápice de um conto, ao virar a página, a gente encontrava o título da história seguinte! Isso me deixava louca e eu odiei o livro, consequentemente, o autor.

A partir disso, sempre que eu ouvia falar "Ítalo Calvino" eu já me posicionava contra.

Um dia, precisei ler um livro dele para fazer um trabalho. Já tinha saído da faculdade há bastante tempo,  trabalhava já ha algum tempo. Outras motivações.

O livro foi "O cavaleiro inexistente".

Amei a história! Achei o autor um gênio, o enredo fantástico, e o texto, mesmo sendo traduzido (não gosto de textos traduzidos), era  uma delícia!

Daí, espontaneamente, procurei pelos outros dois livros que compõem uma trilogia de histórias fantásticas junto com a do caveleiro inexistente, "O visconde partido ao meio" e "O barão das árvores". Desde então Calvino tem ocupado um lugar diferente no meu coração.

Essa semana, também por motivos de trabalho, comecei a ler "As cidades invisíveis", e é desse livro que quero falar. É uma ficção criada em torno do explorador Marco Polo que, na história de Calvino, relata ao imperador mongol Kublai Khan as cidades que conheceu. Comecei lendo inocentemente, mas aqui, na página 85 (a minha edição tem 150 páginas), comecei a suspeitar de que o autor, na verdade, está falando de nós mesmos, das maneiras como nos portamos, vemos e traduzimos o mundo. Recomendo. Texto muito bonito e os (poucos) diálogos entre o imperador e o explorador são intrigantes. Reproduzo o capítulo da pag 85:

" Ao chegar a Fílide, tem-se o prazer de observar quantas pontes diferentes entre si atravessam os canais: pontes arqueadas, cobertas, sobre pilares, sobre barcos, suspensas com parapeitos perfurados; quantas variedades de janelas apresentam-se diante das ruas: bífores, mouriscas, lanceoladas, ogivais, com meias-luas e florões sobrepostos; quantas espécies de pavimento cobrem o chão: de pedregulhos, de lejotas, de saibro, de pastilhas brancas e azuis. Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: um cesto de alcaparras que surge na muralha da fortaleza, as estátuas de três rainhas numa mísula, uma cúpula em forma de cebola com três pequenas cebolas introduzidas em sua extremidade. "Feliz é aquele que todos os dias tem Fílide ao alcance dos olhos e nunca acaba de ver as coisas que ela contém", exclama-se, triste por ter de deixar a cidade depois de tê-la olhado apenas de relance.

Sucede que, no entanto, de permanecer em Fílide e passar ali o resto dos dias. A cidade logo se desbota, apagam-se os florões, as estátuas sobre as mísulas, as cúpulas. Como todos os habitantes de Fílide, anda-se por linhas em zique-zague de uma rua para a outra, distingue-se entre zonas de sol e zonas de sombra, uma porta aqui, uma escada ali, um banco para apoiar o cesto, uma valeta onde tropeça quem não toma cuidado. Todo o resto da cidade é invisível. Fílide é um espaço em que os percursos são traçados entre pontos suspensos no vazio, o caminho mais curto para alcançar a tenda daquele comerciante evitando o guichê daquele credor. Os passos seguem não o que se encontra fora do alcance dos olhos mas dentro, sepultado e cancelado: se entre dois pórticos um continua a parecer mais alegre é porque trinta anos atrás ali passava uma moça de largas mangas bordadas, ou então é apenas porque a uma certa hora do dia recebe uma luz como a daquele pórtico de cuja localização não se recorda mais.

Milhões de olhos erguem-se diante de janelas pontes alcaparras e é como se examinasse uma página em branco. Muitas são as cidades como Fílide que evitam olhares, exceto quando pegas de surpresa."


( Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis. Cia das Letras.)